sexta-feira, 31 de julho de 2009

Guerreiros do 510, do 234, da rua…

Guerreiros do 510, do 234, da rua…

30 de Julho de 2009
Categoria: Destaques

O processo enfrentado pelos “Guerreiros do 510/234” no centro da cidade do Rio de Janeiro, especificamente, teve um desfecho triste e truculento, fruto de uma situação que já se estendia há meses. Por Matheus Grandi, Tatiana Tramontani, Rafael Almeida e Marianna Moreira

501fAs ocupações, seu contexto e seu desfecho não são novidades para a realidade rural ou urbana de muitas partes do país, como bem demonstram os vários artigos já publicados aqui [1]. O processo enfrentado pelos “Guerreiros do 510/234” no centro da cidade do Rio de Janeiro, especificamente, teve um desfecho triste e truculento, fruto de uma situação que já se estendia há meses.

Os moradores ocupavam há mais de 3 anos um imóvel na Av. Gomes Freire 510 (Centro do Rio de Janeiro, ao lado da Lapa). Trata-se de um edifício garagem [2], construído em concreto armado, uma estrutura extremamente resistente para sustentar o peso de automóveis estacionados em 18 andares de lajes sobrepostas. Segundo informações dos próprios moradores, este imóvel pertenceria ao Banco do Brasil. Desde janeiro de 2009, os moradores optaram pela organização de um coletivo para gerirem e planejarem as tarefas de manutenção e a convivência dentro do prédio. A partir dessa data, foram definidas pelos moradores reuniões semanais (assembléias de moradores), além de comissões de trabalho para limpeza, manutenção da iluminação e conservação do prédio (pintura e consertos em geral), segurança, coleta de lixo etc. Dessa forma, os moradores vinham, há mais de três anos, mas, mais especificamente, desde janeiro de 2009, construindo coletivamente uma verdadeira e digna moradia na Av. Gomes Freire, número 510, processo acompanhado, registrado e divulgado com afinco pelo Passa Palavra [3].

Contudo, a presença de “sem-tetos” ocupando prédios na região vinha, já há algum tempo, incomodando moradores “formais” e comerciantes do local. Através de diversos programas da Prefeitura e do estado, a “revitalização” da área da Lapa e adjacências no decorrer dos últimos anos tratou de expulsar a população mais precarizada (seja de seus antigos espaços de moradia no entorno, seja das opções de lazer popular que antes também tinham lugar na área). Sob o álibi do “embelezamento” e do “ordenamento”, um dos espaços antigamente mais heterogêneos da capital carioca pasteurizou-se: casas de shows com altos preços, hotéis, novos condomínios residenciais, aumento da perseguição a ambulantes. A ocupação definitivamente não poderia se inserir em tal contexto.

O prédio foi inúmeras vezes “denunciado” por comerciantes vizinhos, principalmente de um hotel que se encontra ao lado do edifício, sob a alegação de “bagunça”, “desordem”, “baderna”. Todas totalmente injustificadas (“bagunças” de outras classes sociais ao seu redor nunca suscitaram denúncias), as alegações feitas contra os sem-teto remetiam à uma atmosfera de “perigo”, “desordem” e “antiestética”. E, claramente, à uma população com baixo poder de consumo para os padrões esperados pelos vizinhos.

Os moradores e Guerreiros do 510, em janeiro de 2009, resistiram a uma tentativa de despejo motivada por freqüentes reclamações da parte dos proprietários do hotel localizado nas proximidades da Ocupação O despejo não foi concretizado por conta da mobilização dos moradores, demonstrando mais uma vez as possibilidades de conquista e organização popular, como ficou registrado no vídeo publicado também aqui no final de fevereiro [4]. Pouco tempo depois, em 22 de maio de 2009, o prédio foi atingido por um incêndio que começou em um dos andares e atingiu outros quatro pavimentos do edifício [5]. Este incêndio possibilitou à Prefeitura retirar todos os moradores do prédio alegando que eles poderiam retornar às suas residências em até 72 horas. Entretanto, embasada em laudo expedido pela Defesa Civil e Corpo de Bombeiros, interditou o imóvel alegando falta de condições de moradia e risco de acidentes. É interessante notar, contudo, que no mês seguinte outro engenheiro ligado aos movimentos sociais no município do Rio de Janeiro emitiu um laudo que contradiria o anterior emitido pelos órgãos públicos: o prédio mantinha plenas condições de segurança, em termos estruturais, e em condições de ocupação. Afinal, trata-se de um edifício com estrutura extremamente reforçada, como já foi mencionado aqui, por conta de sua antiga função (edifício garagem). Contudo, a decisão de desocupação do imóvel e expulsão dos moradores foi mantida pela Prefeitura e, desde essa data os mesmos passaram a viver sob a marquise, na calçada do próprio prédio.

As cerca de 40 famílias jogadas na rua permaneceram sobrevivendo de forma muito precária. Por força da absoluta falta de uma política habitacional consistente do Estado brasileiro que dê conta do imenso déficit de moradias do país, e em um momento histórico perverso de conluio estatal na cidade (com Município, Estado e União unidos), as famílias guerreiras foram obrigadas pelo poder público a viverem como “moradores de rua” (que não eram) durante cerca de um mês. Os defensores públicos que acompanhavam o coletivo entraram junto à Prefeitura com um pedido de aluguel social, mas este lhes foi rejeitado. Passados trinta dias sob a marquise, sofrendo ameaças constantes por parte de representantes de órgãos públicos, além do perigo de se dormir e viver em uma calçada sob o risco de qualquer tipo de vandalismo ou maldade de transeuntes ou “vizinhos incomodados com a situação” (leiam-se: comerciantes ávidos por atrair consumidores, especialmente hoteleiros e afins), parte dos moradores decidiu organizar um novo processo de ocupação. Puseram-se, então, em ação.

Após um planejamento prévio, o coletivo formado por idosos, mulheres, homens e crianças ocupou na madrugada de uma segunda-feira, dia 22 de junho de 2009, um novo imóvel [6]. Esse novo prédio, propriedade do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), é localizado na Avenida Mem de Sá (uma das principais vias da Lapa), número 234, nas proximidades da Praça da Cruz Vermelha, Centro do Rio de Janeiro. O imóvel, de 7 andares, já servia de moradia para duas famílias que ilegalmente pagavam aluguel (não se sabe pra quem) e possuía também uma loja de doces em seu piso térreo (espaço que, segundo o “proprietário” – também morador – foi comprado por 28 mil reais). Fora essa atividade de moradia e comércio (irregular?), era um imóvel que estava desativado há mais de 15 anos. As famílias moradoras, no entanto, não sofreram qualquer tipo de coerção ou violência: tratados com todo o respeito e dignidade por parte dos ocupantes, as famílias declararam inclusive à polícia (no decorrer das negociações) que permaneciam no interior do prédio por livre vontade e que estavam sendo tratados perfeitamente bem pelo coletivo.501modificado

Na madrugada da ocupação, a polícia foi chamada imediatamente pelos seguranças de um estabelecimento localizado em frente ao imóvel. Os policiais abordaram os apoiadores que estavam do lado de fora da ocupação, na calçada (via pública de pedestres), de maneira intransigente, e durante toda a noite e o dia seguinte à ocupação a entrada de água e qualquer tipo de alimento no prédio foi proibida (até mesmo leite para as crianças de colo que lá estavam).

A negociação junto ao INSS de Brasília, intermediada por defensores públicos, advogados dos sem-teto e apoiadores no local, foi feita no sentido da possibilidade de que o imóvel pudesse ser adquirido pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para que assim pudesse ser destinado por esta instituição para moradia social. No entanto o INSS do Rio de Janeiro foi contrário à decisão, encaminhando a ação de reintegração de posse do imóvel e persistindo intransigentemente em sua execução. O decreto do despejo acabou sendo cumprido na sexta-feira, dia 26 de junho de 2009. Note-se: no documento, a juíza responsável ressaltava que a reintegração deveria ser realizada “a qualquer momento do dia”, estabelecendo uma atmosfera de terror e medo constante entre as famílias pela possibilidade de sofrerem a reintegração em horários como a plena madrugada. O receio levou os apoiadores a fazerem vigílias em frente ao prédio, também embebidas pela tensão que a escuridão e o breu noturno traziam consigo – especialmente pelo anonimato e pouca visibilidade pública que qualquer tipo de ação violenta à noite possibilita [7].

Dia 26 de junho. O despejo contou com agentes da Polícia Federal e da Polícia Militar do RJ (incluídos mais de uma dúzia de integrantes do Batalhão de Choque da PMRJ). Mesmo diante da truculência dos agentes de segurança, os ocupantes optaram por resistir à reintegração (obviamente sem estarem dispostos ao confronto com os policiais), dificultando ao máximo o acesso ao prédio pela porta principal. Reforce-se: logicamente sem entrar em confronto com a polícia.

Cerca de 30 apoiadores entre estudantes, militantes de movimentos sociais, moradores de outras ocupações e cidadãos que ali se encontravam puramente por se sensibilizarem com a situação daqueles moradores, posicionaram-se e permaneceram em frente à entrada do prédio na tentativa de dificultar a entrada do Batalhão de Choque e, em última hipótese, exigindo que o mandado fosse cumprido com o mínimo de garantias de que ninguém sairia ferido ou agredido. A tentativa foi em vão. Apesar de estarem todos ali de forma pacífica, sem demonstrar qualquer tipo de agressividade para com a polícia ou impor qualquer risco à sociedade, os apoiadores foram ilegal e violentamente retirados da porta com uso de cassetetes, spray de pimenta, bombas de gás de pimenta e de efeito moral. Quatro pessoas foram detidas com uso de extrema e descabida violência à revelia de qualquer justificativa plausível, tendo sido alegada a vaga “desobediência”. Não bastando, o Batalhão de Choque atirou irresponsavelmente balas de borracha e bombas de gás para o interior do prédio, onde estavam crianças, um bebê recém-nascido, mulheres grávidas, idosos e todos os demais moradores. O bebê de 20 dias passou a vomitar após o ataque da polícia e foi encaminhado para o hospital logo que os pais deixaram o imóvel. Uma mulher grávida de nove meses sofreu uma queda violenta e também seguiu para o hospital. Ainda que todos os apelos houvessem sido feitos antes da intervenção criminosa e ilegal da polícia, nenhum representante do Conselho Tutelar (para garantir a integridade das crianças) ou da Delegacia do Idoso estava presente. Sequer havia alguma ambulância de plantão – sendo que diversos agentes haviam sido informados da presença de mulheres grávidas no interior do prédio. Nem mesmo o mandado, teoricamente trazido pelo oficial de justiça responsável, foi apresentado aos ocupantes. Todos esses passos e garantias são exigidos por força de lei, mas foram direitos negados aos cidadãos que ali estavam – colocando a ação dos policiais e do oficial declaradamente na ilegalidade.

501ePara entrar no prédio, os policiais utilizaram diversos instrumentos: de marretas a uma serra elétrica. No entanto, só conseguiram abrir a porta quando os moradores, com receio de sofrerem qualquer tipo de violência policial no interior do prédio (onde estavam longe da visibilidade pública, da ação dos apoiadores e distantes de todos os olhos da mídia corporativa – historicamente comprometida com a opressão popular), decidiram sair pacificamente. Vale frisar novamente: não havia no local, no momento do despejo, a presença de nenhuma policial (mulheres da corporação da PMRJ, exigência legalmente fundamentada), de nenhum representante do Conselho Tutelar nem da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente e Idoso (DPCAI) para dar apoio aos ocupantes e assegurar minimamente sua integridade. Diante da situação de precariedade e urgência de moradia, o Estado optou por simplesmente colocar as famílias na rua. O que fazer diante de condições como essas?

Deste local, as famílias migraram para a marquise da sede da Gerência Executiva do INSS carioca, na rua Pedro Lessa, próximo à Cinelândia, também Centro do Rio. A intenção era que o INSS interviesse e solucionasse a situação, visto a informação (confirmada horas depois) de que a superintendência geral do INSS de Brasília havia solicitado a suspensão da reintegração no meio da manhã do dia 26 de junho de 2009, horas antes do despejo das famílias do imóvel da Av. Mem de Sá. No entanto, o INSS do Rio de Janeiro, por conta própria, não repassou a informação à juíza responsável pelo processo. Trata-se de um nítido caso de desconsideração não somente à hierarquia da instituição (reivindicada como “intransponível” somente quando de interesse), mas ao próprio direito constitucional de moradia digna. Onde encontramos o judiciário exigindo tal cumprimento por parte de uma autarquia federal? A garantia do famoso “direito à propriedade” vem mais uma vez mostrar-se extra-legal: se não bastasse toda a tradição jurídica que encara o direito da propriedade como nitidamente prioritário em relação aos demais direitos constitucionais (dentre eles o de moradia digna, vide Art. 6º da Constituição), mesmo quando as negociações abrem margens de manobra para pequenas conquistas dos movimentos sociais populares e quando a propriedade é obviamente pública (como no caso de imóveis do poder público), a “garantia da propriedade” em detrimento de qualquer outro aspecto vinculado a uma vida minimamente digna é encampada de maneira subjetiva e simbólica pelos gestores públicos de plantão.

A negociação jurídica conseguiu conquistar somente uma solução parcial: o aluguel social de R$ 300,00 por alguns meses pago da parte do governo do Estado e da Prefeitura. No entanto, é consenso entre as próprias famílias e outros tantos integrantes do movimento dos sem-teto carioca de que o aluguel social (inconstante e insuficiente) não se trata de política pública de habitação. O movimento se pauta pela conquista de moradia, especialmente quando próxima aos locais de maior possibilidade de renda por parte dos moradores (no caso, o Centro da cidade). O paliativo governamental do aluguel social não só é irrisório por não permitir o aluguel de qualquer cômodo próximo à área central do Rio de Janeiro (empurrando, assim, as famílias para as áreas mais distantes da cidade – sem acesso a atividades culturais e serviços públicos essenciais como saúde, educação e transporte, e sem levar em consideração que todas as crianças envolvidas estão hoje matriculadas em escolas públicas justamente do Centro), como também colabora para a desmobilização e para o enfraquecimento do movimento social dos sem-teto como um todo.

É explícita e gritante a falta de políticas públicas em todas as esferas de governo que atendam minimamente às famílias afetadas pelo déficit habitacional. O alarde desproporcional criado em torno dos últimos programas habitacionais do Governo Federal, em conjunto com toda sorte de debates e discussões sobre a “revitalização” das áreas centrais de grandes cidades brasileiras (leia-se: a revalorização imobiliária – especialmente operacionalizada por meio de investimentos públicos em infraestrutura, marketing, “segurança” e limpeza social – de áreas até então mantidas como reservas de valor pelo capital imobiliário), desconsidera completamente o fato de cerca de 90% da população que sofre com o déficit habitacional brasileiro possuir uma faixa de renda que não é contemplada por qualquer política pública (entre 0 e 3 salários mínimos). 70% da população do Centro do Rio de Janeiro, por sua vez, se encontra nesta faixa de renda (se elas não serão beneficiadas pelas políticas públicas, para onde serão empurradas quando a dita “revitalização” revalorizar a área?). Retoricamente, vários são os órgãos públicos das três esferas de governo que dizem se preocupar em destinar seus imóveis vagos e ociosos para moradia de interesse social. Como exemplos emblemáticos temos o próprio INSS e o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), cada um destinando de um a dois de suas centenas de imóveis para moradia popular (atingindo conjuntamente, se muito, pouco mais de 200 famílias). A Secretaria do Patrimônio da União, com incontáveis imóveis da extinta Rede Ferroviária Federal (dentre outros tantos), tem até o momento se comprometido a encaminhar os imóveis localizados no centro do Rio de Janeiro para a iniciativa privada, ao invés de destinar para moradias de interesse social. Da mesma maneira os imóveis da Prefeitura e do estado (ociosos ou devedores) também têm servido de moradia para diversos outros tipos de animais (à exceção dos humanos), contribuindo para a constante dissolução das construções pelas intempéries – enquanto crianças, idosos, mulheres e homens são obrigados a disputarem metros quadrados de calçadas e marquises [8].501a

É fundamental afirmar que não se trata da necessidade de discussões meramente técnicas ou de alternativas para contornar as limitações burocráticas, orçamentárias ou econômicas da instituição estatal. O debate gira em torno da explicitação das vontades políticas envolvidas e concretizadas na definição das prioridades. Quantas unidades familiares poderiam ser erguidas, reformadas ou regularizadas com a cifra de 3 bilhões de reais previstas somente para uma das etapas da “revitalização” da zona portuária do Rio? Os imóveis ociosos deveriam servir de moradia à população que não tem tal direito constitucional garantido, ou de fonte de lucro para a iniciativa privada de grande porte (pois não serão pequenos comerciantes locais a construírem grandes casas noturnas, hotéis e condomínios)? Ou, por outro lado, deveriam servir como fonte de arrecadações para a penumbra dos cofres públicos (por meio de impostos com valores obscuros – dos quais não raro, os empreendedores são isentos sob a égide de “estímulos fiscais” dados pelo Estado – que, quando realmente são recolhidos, via de regra dificilmente são reinvestidos em melhorias efetivamente públicas)?

Notadamente na cidade do Rio de Janeiro, ao passo que nenhuma política pública atinge a maior parte da população que necessita de moradia e de melhorias em suas condições de vida, muitas são as políticas e ações dos órgãos administrativos (municipais, estaduais e federais) que atingem diretamente a população de baixa renda no que se refere à sua repressão: “Choque de Ordem” contra trabalhadores informais, guardadores de carros e moradores de rua; muros cercando favelas da Zona Sul da cidade; “Unidades Pacificadoras” de “policiamento comunitário”; proibição de atividades culturais; retomada das remoções de favelas; PAC – Programa de Aceleração do Crescimento –, programa federal com obras como remoção de favelas, “urbanização” de áreas periféricas que muitas vezes levam à remoção de moradias “irregulares”, etc; armamento da Guarda Municipal com tasers, balas de borracha e spray de pimenta; crescente investimento em equipamentos de repressão como helicópteros e “caveirões”; entre outros. Se lindas pombas brancas, marcantes balões vermelhos, estáticas cruzes nas areias, assépticas passeatas à beira-mar ou ordeiros abraços à Lagoa Rodrigo de Freitas (há tempos abandonada, degradada, poluída) alardeiam a deterioração da qualidade de vida de uma classe média que vê sua cidade “suja”, “feia” e “perigosa”, por onde andarão essas vozes quando são justamente as bocas tidas por eles como “sujas, feias e perigosas” a suplicar aos prantos por condições mínimas de vida?

É cada dez mais urgente a união e articulação cooperativa dos indivíduos e organizações, bem como a unificação de bandeiras (moradia, mobilidade, cultura efetivamente popular, segurança realmente pública, sustentabilidade, garantia de geração de ocupação e renda) em prol da construção de alternativas populares e não-autoritárias que garantam a melhoria da qualidade de vida e o aumento da justiça social na cidade (ainda que, se for o caso, precisem ser implementadas apesar dos mecanismos, imposições, restrições e repressões do Estado). Uma leitura aprofundada da conjuntura e dos projetos de cidade (não somente os explícitos, mas principalmente os velados) que as perspectivas privatistas, elitistas, tecnocráticas (de direita e de esquerda) e estatistas têm precisa ser feita com seriedade e dedicação não só “a partir de preocupações populares”, mas concreta e diretamente pela própria população. Da mesma maneira, um verdadeiro projeto popular precisa ser construído com bases sólidas de mobilização e discussões densas sobre qual cidade se quer, sobre quais são as prioridades e sobre como um processo auto-gerido, auto-organizado, auto-planejado pode ser feito.

501cEnquanto isso, a tendência de mais e mais ocupações seguirem sendo feitas é enorme. O Estado tem se empenhado em enfraquecer e solapar cada tipo de alternativa popular à crescente precarização de suas condições de vida (sejam alternativas de geração de renda, de trabalho, de educação, de cultura ou de moradia), bem como em criminalizar de toda forma os movimentos e as lutas sociais [9]. Assim, a indignação popular ganha cada vez mais justificativas e razões para existir – e a solidariedade e a ajuda mútua são imperativos cada vez maiores para isso! O repúdio à violência estatal e privada é amplo, crescente e legítimo.

Somos todos sem-teto. Somos todos camelôs.

Notas

[1] – Várias publicações feitas sobre o tema podem ser acessadas em http://passapalavra.info/?tag=ocupacoes

[2] – Atualmente diversos imóveis públicos no centro da cidade do Rio de Janeiro têm servido como estacionamentos privados, atividade que alia a extração de renda do imóvel à sua manutenção como reserva de valor imobiliário. Com os cada vez mais faraônicos e elitistas projetos de “revitalização” do centro da cidade (como se o que existe atualmente na área não fosse considerado “vida”), tais imóveis têm-se valido da crescente valorização imobiliária da região – demonstrando o constante descaso dos poderes públicos com a questão do déficit habitacional e do estabelecimento de alternativas de moradia para boa parte da população de baixa renda.

[3] – A situação e o processo de organização da ocupação foi registrado em uma série de publicações feitas no site desde fevereiro de 2009. Bons exemplos estão em http://passapalavra.info/?p=987 (mutirão de limpeza) e em http://passapalavra.info/?p=3431 (inauguração da biblioteca).

[4] – http://passapalavra.info/?p=989

[5] – http://passapalavra.info/?p=4040

[6] – http://passapalavra.info/?p=6903

[7] – Outro fato demonstrou com clareza ainda maior a relação que o poder público municipal estabelece com as famílias envolvidas em situações como essa. Na mesma semana, por ordem judicial, os mesmos ocupantes deveriam retirar seus móveis de baixo da marquise do prédio da Av. Gomes Freire. A Prefeitura, no entanto, fora obrigada a auxiliar no transporte desses móveis. Após aguardar a chegada de algum caminhão da administração municipal, qual não foi a surpresa e indignação: tratava-se de um caminhão de lixo da Companhia Municipal de Limpeza Urbana - COMLURB. As famílias que lá estavam recusaram-se a serem tratadas como lixo. Surpreendentemente ainda foi necessário negociar, em situações em diversos momentos de muita tensão, a presença de um caminhão adequado para o translado. Somente horas depois um caminhão da Defesa Civil pôde ser deslocado para o local.

[8] – É importante inclusive denunciar que até mesmo as marquises dos prédios do Centro do Rio de Janeiro têm deixado de ser um (precário e desumano) “teto” para a população de rua: um dos carros-chefe da atual administração pública municipal, chamado “Choque de Ordem”, tem implementado ações inconsequentes e absolutamente cruéis. Para além da perseguição irrestrita a camelôs, do roubo de suas mercadorias (diversas vezes “apreendidas” sem a devida notificação, impossibilitando a retirada dos materiais que teoricamente iriam para os depósitos da Prefeitura) e da proibição de distribuição de refeições a moradores de rua (dentre outras atitudes), a Prefeitura tem agora optado por lavar as ruas e calçadas da área central da cidade de noite com água clorada – impedindo a permanência de moradores de rua em áreas indesejadas.

[9] – http://passapalavra.info/?p=1754

Comentários

1 Comentário on "Guerreiros do 510, do 234, da rua…"

  1. Eduardo Tomazine em 30 de Julho de 2009 19:29
    Parabéns pelo relato, companheiros!
    Acho importante levantarmos as seguintes questões:
    1) Por que a polícia agiu de maneira tão truculenta dessa vez, se, no Rio de Janeiro, as expulsões de ocupações em edifícios públicos vinham sendo feitas mediante um aviso prévio aos ocupantes, os quais, em geral, optavam por sair pacificamente?
    2) Quais são os verdadeiros interesses da direção do INSS do Estado do Rio de Janeiro, se a linha atual (ao menos aquela que é declarada) do governo federal é transformar os edifícios desocupados da União em moradia de interesse social; se o INSS declarou arrecadação recorde no último ano; se a manutenção de um imóvel como aquele vazio representa mais um passivo do que um ativo nos cofres dessa autarquia e, por fim, se a incorporação dos imóveis para fins de moradia social não são feitas sem que a autarquia seja restituída financeiramente?
    A primeira pergunta pode começar a ser respondida pela leitura da atual conjuntura política da cidade do Rio de Janeiro. Essa foi, pois, uma “ação exemplar”.
    A segunda pergunta precisa ser encaminhada às direções estadual e federal do INSS, pois o ocorrido levanta, no mínimo, muitas suspeitas.

2 comentários:

  1. A experiência de violência sofrida pelas famílias denominadas "Guerreiros do 510" serve como exemplo do quadro geral das diversas famílias sobreviventes no Centro do Rio de Janeiro e de tantas outras Cidades deste País.

    Lamentavelmente, para estas guerreiras famílias, precisamos observar o sofrimento vivido para que a realidade de tantas outras famílias nos seja apresentada, portanto, não podemos nos furtar ao desafio de enxergar a realidade que muitos não querem ver: nesta sociedade de consumo moradia é sinônimo de mercadoria e não de direito!!!

    Então como as famílias que sequer têm emprego, e no caso do Rio de Janeiro são impedidas inclusive de serem camelôs, podem alcançar a tão sonhada e prometida casa própria?
    A resposta é óbvia: com organização coletiva, mas como o artigo fala: com "bases sólidas de mobilização", com discussões e decisões coletivas, fugindo dos velhos modelos de representação, só assim poderemos mudar o status da moradia: de mercadoria para direito humano fundamental!!!

    Só gostaria de corrigir um dado do texto: o aluguel social.

    Na verdade não houve "negociação jurídica", a Defensoria Pública teve que ingressar com uma Ação civil pública com pedido liminar (ou seja urgente) para que as famílias despejadas recebessem do Estado e Município uma ajuda econômica mensal, que chamamos de aluguel social, até que fossem incluídas em programa habitacional (pedido principal da ação)
    A juíza da ação concedeu a ajuda urgente, mas a decisão foi cassada pelo Tribunal de Justiça a pedido dos réus: Município e Estado.
    As famílias continuam sem qualquer solução habitacional, ainda que provisória, neste ponto não há negociação possível com o Estado e Município.

    Concordo que o aluguel social é um paliativo, mas acontece que nem isso temos no nosso Estado.

    Também concordo que o aluguel social, independente do valor, não pode ser a única reivindicação dos sem-teto.
    A questão colocada é que não podemos continuar a assistir os despejos acontecerem, jogando as famílias simplesmente nas ruas, como ocorre diariamente, sem que o Estado e Município se obriguem a nada, acredito que todo despejo coletivo, independente do motivo ou da natureza privada ou pública do imóvel é responsabilidade do Estado.

    Abraços fraternos,
    Maria Lúcia de Pontes
    defensora pública

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  2. Olá,

    me chamo Claraluz Kaiser e sou estudante de Comunicação Social na UFRJ e arrisco como fotógrafa. Eu estou querendo desenvolver um projeto de fotografia com as ocupações de edificios obsoletos na cidade do Rio de Janeiro. Buscando sobre estes predios na internet encontrei este blog. Enfim, eu estava precisando fazer um levantamento desses prédios e saber a viabilidade de fazer umas fotos com os moradores. Gostaria da sua ajuda. Entre em contato comigo, por favor: claraluz.kaiser@gmail.com Muito Obrigada e parabéns pelo blog!!

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