sexta-feira, 31 de julho de 2009

Guerreiros do 510, do 234, da rua…

Guerreiros do 510, do 234, da rua…

30 de Julho de 2009
Categoria: Destaques

O processo enfrentado pelos “Guerreiros do 510/234” no centro da cidade do Rio de Janeiro, especificamente, teve um desfecho triste e truculento, fruto de uma situação que já se estendia há meses. Por Matheus Grandi, Tatiana Tramontani, Rafael Almeida e Marianna Moreira

501fAs ocupações, seu contexto e seu desfecho não são novidades para a realidade rural ou urbana de muitas partes do país, como bem demonstram os vários artigos já publicados aqui [1]. O processo enfrentado pelos “Guerreiros do 510/234” no centro da cidade do Rio de Janeiro, especificamente, teve um desfecho triste e truculento, fruto de uma situação que já se estendia há meses.

Os moradores ocupavam há mais de 3 anos um imóvel na Av. Gomes Freire 510 (Centro do Rio de Janeiro, ao lado da Lapa). Trata-se de um edifício garagem [2], construído em concreto armado, uma estrutura extremamente resistente para sustentar o peso de automóveis estacionados em 18 andares de lajes sobrepostas. Segundo informações dos próprios moradores, este imóvel pertenceria ao Banco do Brasil. Desde janeiro de 2009, os moradores optaram pela organização de um coletivo para gerirem e planejarem as tarefas de manutenção e a convivência dentro do prédio. A partir dessa data, foram definidas pelos moradores reuniões semanais (assembléias de moradores), além de comissões de trabalho para limpeza, manutenção da iluminação e conservação do prédio (pintura e consertos em geral), segurança, coleta de lixo etc. Dessa forma, os moradores vinham, há mais de três anos, mas, mais especificamente, desde janeiro de 2009, construindo coletivamente uma verdadeira e digna moradia na Av. Gomes Freire, número 510, processo acompanhado, registrado e divulgado com afinco pelo Passa Palavra [3].

Contudo, a presença de “sem-tetos” ocupando prédios na região vinha, já há algum tempo, incomodando moradores “formais” e comerciantes do local. Através de diversos programas da Prefeitura e do estado, a “revitalização” da área da Lapa e adjacências no decorrer dos últimos anos tratou de expulsar a população mais precarizada (seja de seus antigos espaços de moradia no entorno, seja das opções de lazer popular que antes também tinham lugar na área). Sob o álibi do “embelezamento” e do “ordenamento”, um dos espaços antigamente mais heterogêneos da capital carioca pasteurizou-se: casas de shows com altos preços, hotéis, novos condomínios residenciais, aumento da perseguição a ambulantes. A ocupação definitivamente não poderia se inserir em tal contexto.

O prédio foi inúmeras vezes “denunciado” por comerciantes vizinhos, principalmente de um hotel que se encontra ao lado do edifício, sob a alegação de “bagunça”, “desordem”, “baderna”. Todas totalmente injustificadas (“bagunças” de outras classes sociais ao seu redor nunca suscitaram denúncias), as alegações feitas contra os sem-teto remetiam à uma atmosfera de “perigo”, “desordem” e “antiestética”. E, claramente, à uma população com baixo poder de consumo para os padrões esperados pelos vizinhos.

Os moradores e Guerreiros do 510, em janeiro de 2009, resistiram a uma tentativa de despejo motivada por freqüentes reclamações da parte dos proprietários do hotel localizado nas proximidades da Ocupação O despejo não foi concretizado por conta da mobilização dos moradores, demonstrando mais uma vez as possibilidades de conquista e organização popular, como ficou registrado no vídeo publicado também aqui no final de fevereiro [4]. Pouco tempo depois, em 22 de maio de 2009, o prédio foi atingido por um incêndio que começou em um dos andares e atingiu outros quatro pavimentos do edifício [5]. Este incêndio possibilitou à Prefeitura retirar todos os moradores do prédio alegando que eles poderiam retornar às suas residências em até 72 horas. Entretanto, embasada em laudo expedido pela Defesa Civil e Corpo de Bombeiros, interditou o imóvel alegando falta de condições de moradia e risco de acidentes. É interessante notar, contudo, que no mês seguinte outro engenheiro ligado aos movimentos sociais no município do Rio de Janeiro emitiu um laudo que contradiria o anterior emitido pelos órgãos públicos: o prédio mantinha plenas condições de segurança, em termos estruturais, e em condições de ocupação. Afinal, trata-se de um edifício com estrutura extremamente reforçada, como já foi mencionado aqui, por conta de sua antiga função (edifício garagem). Contudo, a decisão de desocupação do imóvel e expulsão dos moradores foi mantida pela Prefeitura e, desde essa data os mesmos passaram a viver sob a marquise, na calçada do próprio prédio.

As cerca de 40 famílias jogadas na rua permaneceram sobrevivendo de forma muito precária. Por força da absoluta falta de uma política habitacional consistente do Estado brasileiro que dê conta do imenso déficit de moradias do país, e em um momento histórico perverso de conluio estatal na cidade (com Município, Estado e União unidos), as famílias guerreiras foram obrigadas pelo poder público a viverem como “moradores de rua” (que não eram) durante cerca de um mês. Os defensores públicos que acompanhavam o coletivo entraram junto à Prefeitura com um pedido de aluguel social, mas este lhes foi rejeitado. Passados trinta dias sob a marquise, sofrendo ameaças constantes por parte de representantes de órgãos públicos, além do perigo de se dormir e viver em uma calçada sob o risco de qualquer tipo de vandalismo ou maldade de transeuntes ou “vizinhos incomodados com a situação” (leiam-se: comerciantes ávidos por atrair consumidores, especialmente hoteleiros e afins), parte dos moradores decidiu organizar um novo processo de ocupação. Puseram-se, então, em ação.

Após um planejamento prévio, o coletivo formado por idosos, mulheres, homens e crianças ocupou na madrugada de uma segunda-feira, dia 22 de junho de 2009, um novo imóvel [6]. Esse novo prédio, propriedade do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), é localizado na Avenida Mem de Sá (uma das principais vias da Lapa), número 234, nas proximidades da Praça da Cruz Vermelha, Centro do Rio de Janeiro. O imóvel, de 7 andares, já servia de moradia para duas famílias que ilegalmente pagavam aluguel (não se sabe pra quem) e possuía também uma loja de doces em seu piso térreo (espaço que, segundo o “proprietário” – também morador – foi comprado por 28 mil reais). Fora essa atividade de moradia e comércio (irregular?), era um imóvel que estava desativado há mais de 15 anos. As famílias moradoras, no entanto, não sofreram qualquer tipo de coerção ou violência: tratados com todo o respeito e dignidade por parte dos ocupantes, as famílias declararam inclusive à polícia (no decorrer das negociações) que permaneciam no interior do prédio por livre vontade e que estavam sendo tratados perfeitamente bem pelo coletivo.501modificado

Na madrugada da ocupação, a polícia foi chamada imediatamente pelos seguranças de um estabelecimento localizado em frente ao imóvel. Os policiais abordaram os apoiadores que estavam do lado de fora da ocupação, na calçada (via pública de pedestres), de maneira intransigente, e durante toda a noite e o dia seguinte à ocupação a entrada de água e qualquer tipo de alimento no prédio foi proibida (até mesmo leite para as crianças de colo que lá estavam).

A negociação junto ao INSS de Brasília, intermediada por defensores públicos, advogados dos sem-teto e apoiadores no local, foi feita no sentido da possibilidade de que o imóvel pudesse ser adquirido pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para que assim pudesse ser destinado por esta instituição para moradia social. No entanto o INSS do Rio de Janeiro foi contrário à decisão, encaminhando a ação de reintegração de posse do imóvel e persistindo intransigentemente em sua execução. O decreto do despejo acabou sendo cumprido na sexta-feira, dia 26 de junho de 2009. Note-se: no documento, a juíza responsável ressaltava que a reintegração deveria ser realizada “a qualquer momento do dia”, estabelecendo uma atmosfera de terror e medo constante entre as famílias pela possibilidade de sofrerem a reintegração em horários como a plena madrugada. O receio levou os apoiadores a fazerem vigílias em frente ao prédio, também embebidas pela tensão que a escuridão e o breu noturno traziam consigo – especialmente pelo anonimato e pouca visibilidade pública que qualquer tipo de ação violenta à noite possibilita [7].

Dia 26 de junho. O despejo contou com agentes da Polícia Federal e da Polícia Militar do RJ (incluídos mais de uma dúzia de integrantes do Batalhão de Choque da PMRJ). Mesmo diante da truculência dos agentes de segurança, os ocupantes optaram por resistir à reintegração (obviamente sem estarem dispostos ao confronto com os policiais), dificultando ao máximo o acesso ao prédio pela porta principal. Reforce-se: logicamente sem entrar em confronto com a polícia.

Cerca de 30 apoiadores entre estudantes, militantes de movimentos sociais, moradores de outras ocupações e cidadãos que ali se encontravam puramente por se sensibilizarem com a situação daqueles moradores, posicionaram-se e permaneceram em frente à entrada do prédio na tentativa de dificultar a entrada do Batalhão de Choque e, em última hipótese, exigindo que o mandado fosse cumprido com o mínimo de garantias de que ninguém sairia ferido ou agredido. A tentativa foi em vão. Apesar de estarem todos ali de forma pacífica, sem demonstrar qualquer tipo de agressividade para com a polícia ou impor qualquer risco à sociedade, os apoiadores foram ilegal e violentamente retirados da porta com uso de cassetetes, spray de pimenta, bombas de gás de pimenta e de efeito moral. Quatro pessoas foram detidas com uso de extrema e descabida violência à revelia de qualquer justificativa plausível, tendo sido alegada a vaga “desobediência”. Não bastando, o Batalhão de Choque atirou irresponsavelmente balas de borracha e bombas de gás para o interior do prédio, onde estavam crianças, um bebê recém-nascido, mulheres grávidas, idosos e todos os demais moradores. O bebê de 20 dias passou a vomitar após o ataque da polícia e foi encaminhado para o hospital logo que os pais deixaram o imóvel. Uma mulher grávida de nove meses sofreu uma queda violenta e também seguiu para o hospital. Ainda que todos os apelos houvessem sido feitos antes da intervenção criminosa e ilegal da polícia, nenhum representante do Conselho Tutelar (para garantir a integridade das crianças) ou da Delegacia do Idoso estava presente. Sequer havia alguma ambulância de plantão – sendo que diversos agentes haviam sido informados da presença de mulheres grávidas no interior do prédio. Nem mesmo o mandado, teoricamente trazido pelo oficial de justiça responsável, foi apresentado aos ocupantes. Todos esses passos e garantias são exigidos por força de lei, mas foram direitos negados aos cidadãos que ali estavam – colocando a ação dos policiais e do oficial declaradamente na ilegalidade.

501ePara entrar no prédio, os policiais utilizaram diversos instrumentos: de marretas a uma serra elétrica. No entanto, só conseguiram abrir a porta quando os moradores, com receio de sofrerem qualquer tipo de violência policial no interior do prédio (onde estavam longe da visibilidade pública, da ação dos apoiadores e distantes de todos os olhos da mídia corporativa – historicamente comprometida com a opressão popular), decidiram sair pacificamente. Vale frisar novamente: não havia no local, no momento do despejo, a presença de nenhuma policial (mulheres da corporação da PMRJ, exigência legalmente fundamentada), de nenhum representante do Conselho Tutelar nem da Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente e Idoso (DPCAI) para dar apoio aos ocupantes e assegurar minimamente sua integridade. Diante da situação de precariedade e urgência de moradia, o Estado optou por simplesmente colocar as famílias na rua. O que fazer diante de condições como essas?

Deste local, as famílias migraram para a marquise da sede da Gerência Executiva do INSS carioca, na rua Pedro Lessa, próximo à Cinelândia, também Centro do Rio. A intenção era que o INSS interviesse e solucionasse a situação, visto a informação (confirmada horas depois) de que a superintendência geral do INSS de Brasília havia solicitado a suspensão da reintegração no meio da manhã do dia 26 de junho de 2009, horas antes do despejo das famílias do imóvel da Av. Mem de Sá. No entanto, o INSS do Rio de Janeiro, por conta própria, não repassou a informação à juíza responsável pelo processo. Trata-se de um nítido caso de desconsideração não somente à hierarquia da instituição (reivindicada como “intransponível” somente quando de interesse), mas ao próprio direito constitucional de moradia digna. Onde encontramos o judiciário exigindo tal cumprimento por parte de uma autarquia federal? A garantia do famoso “direito à propriedade” vem mais uma vez mostrar-se extra-legal: se não bastasse toda a tradição jurídica que encara o direito da propriedade como nitidamente prioritário em relação aos demais direitos constitucionais (dentre eles o de moradia digna, vide Art. 6º da Constituição), mesmo quando as negociações abrem margens de manobra para pequenas conquistas dos movimentos sociais populares e quando a propriedade é obviamente pública (como no caso de imóveis do poder público), a “garantia da propriedade” em detrimento de qualquer outro aspecto vinculado a uma vida minimamente digna é encampada de maneira subjetiva e simbólica pelos gestores públicos de plantão.

A negociação jurídica conseguiu conquistar somente uma solução parcial: o aluguel social de R$ 300,00 por alguns meses pago da parte do governo do Estado e da Prefeitura. No entanto, é consenso entre as próprias famílias e outros tantos integrantes do movimento dos sem-teto carioca de que o aluguel social (inconstante e insuficiente) não se trata de política pública de habitação. O movimento se pauta pela conquista de moradia, especialmente quando próxima aos locais de maior possibilidade de renda por parte dos moradores (no caso, o Centro da cidade). O paliativo governamental do aluguel social não só é irrisório por não permitir o aluguel de qualquer cômodo próximo à área central do Rio de Janeiro (empurrando, assim, as famílias para as áreas mais distantes da cidade – sem acesso a atividades culturais e serviços públicos essenciais como saúde, educação e transporte, e sem levar em consideração que todas as crianças envolvidas estão hoje matriculadas em escolas públicas justamente do Centro), como também colabora para a desmobilização e para o enfraquecimento do movimento social dos sem-teto como um todo.

É explícita e gritante a falta de políticas públicas em todas as esferas de governo que atendam minimamente às famílias afetadas pelo déficit habitacional. O alarde desproporcional criado em torno dos últimos programas habitacionais do Governo Federal, em conjunto com toda sorte de debates e discussões sobre a “revitalização” das áreas centrais de grandes cidades brasileiras (leia-se: a revalorização imobiliária – especialmente operacionalizada por meio de investimentos públicos em infraestrutura, marketing, “segurança” e limpeza social – de áreas até então mantidas como reservas de valor pelo capital imobiliário), desconsidera completamente o fato de cerca de 90% da população que sofre com o déficit habitacional brasileiro possuir uma faixa de renda que não é contemplada por qualquer política pública (entre 0 e 3 salários mínimos). 70% da população do Centro do Rio de Janeiro, por sua vez, se encontra nesta faixa de renda (se elas não serão beneficiadas pelas políticas públicas, para onde serão empurradas quando a dita “revitalização” revalorizar a área?). Retoricamente, vários são os órgãos públicos das três esferas de governo que dizem se preocupar em destinar seus imóveis vagos e ociosos para moradia de interesse social. Como exemplos emblemáticos temos o próprio INSS e o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), cada um destinando de um a dois de suas centenas de imóveis para moradia popular (atingindo conjuntamente, se muito, pouco mais de 200 famílias). A Secretaria do Patrimônio da União, com incontáveis imóveis da extinta Rede Ferroviária Federal (dentre outros tantos), tem até o momento se comprometido a encaminhar os imóveis localizados no centro do Rio de Janeiro para a iniciativa privada, ao invés de destinar para moradias de interesse social. Da mesma maneira os imóveis da Prefeitura e do estado (ociosos ou devedores) também têm servido de moradia para diversos outros tipos de animais (à exceção dos humanos), contribuindo para a constante dissolução das construções pelas intempéries – enquanto crianças, idosos, mulheres e homens são obrigados a disputarem metros quadrados de calçadas e marquises [8].501a

É fundamental afirmar que não se trata da necessidade de discussões meramente técnicas ou de alternativas para contornar as limitações burocráticas, orçamentárias ou econômicas da instituição estatal. O debate gira em torno da explicitação das vontades políticas envolvidas e concretizadas na definição das prioridades. Quantas unidades familiares poderiam ser erguidas, reformadas ou regularizadas com a cifra de 3 bilhões de reais previstas somente para uma das etapas da “revitalização” da zona portuária do Rio? Os imóveis ociosos deveriam servir de moradia à população que não tem tal direito constitucional garantido, ou de fonte de lucro para a iniciativa privada de grande porte (pois não serão pequenos comerciantes locais a construírem grandes casas noturnas, hotéis e condomínios)? Ou, por outro lado, deveriam servir como fonte de arrecadações para a penumbra dos cofres públicos (por meio de impostos com valores obscuros – dos quais não raro, os empreendedores são isentos sob a égide de “estímulos fiscais” dados pelo Estado – que, quando realmente são recolhidos, via de regra dificilmente são reinvestidos em melhorias efetivamente públicas)?

Notadamente na cidade do Rio de Janeiro, ao passo que nenhuma política pública atinge a maior parte da população que necessita de moradia e de melhorias em suas condições de vida, muitas são as políticas e ações dos órgãos administrativos (municipais, estaduais e federais) que atingem diretamente a população de baixa renda no que se refere à sua repressão: “Choque de Ordem” contra trabalhadores informais, guardadores de carros e moradores de rua; muros cercando favelas da Zona Sul da cidade; “Unidades Pacificadoras” de “policiamento comunitário”; proibição de atividades culturais; retomada das remoções de favelas; PAC – Programa de Aceleração do Crescimento –, programa federal com obras como remoção de favelas, “urbanização” de áreas periféricas que muitas vezes levam à remoção de moradias “irregulares”, etc; armamento da Guarda Municipal com tasers, balas de borracha e spray de pimenta; crescente investimento em equipamentos de repressão como helicópteros e “caveirões”; entre outros. Se lindas pombas brancas, marcantes balões vermelhos, estáticas cruzes nas areias, assépticas passeatas à beira-mar ou ordeiros abraços à Lagoa Rodrigo de Freitas (há tempos abandonada, degradada, poluída) alardeiam a deterioração da qualidade de vida de uma classe média que vê sua cidade “suja”, “feia” e “perigosa”, por onde andarão essas vozes quando são justamente as bocas tidas por eles como “sujas, feias e perigosas” a suplicar aos prantos por condições mínimas de vida?

É cada dez mais urgente a união e articulação cooperativa dos indivíduos e organizações, bem como a unificação de bandeiras (moradia, mobilidade, cultura efetivamente popular, segurança realmente pública, sustentabilidade, garantia de geração de ocupação e renda) em prol da construção de alternativas populares e não-autoritárias que garantam a melhoria da qualidade de vida e o aumento da justiça social na cidade (ainda que, se for o caso, precisem ser implementadas apesar dos mecanismos, imposições, restrições e repressões do Estado). Uma leitura aprofundada da conjuntura e dos projetos de cidade (não somente os explícitos, mas principalmente os velados) que as perspectivas privatistas, elitistas, tecnocráticas (de direita e de esquerda) e estatistas têm precisa ser feita com seriedade e dedicação não só “a partir de preocupações populares”, mas concreta e diretamente pela própria população. Da mesma maneira, um verdadeiro projeto popular precisa ser construído com bases sólidas de mobilização e discussões densas sobre qual cidade se quer, sobre quais são as prioridades e sobre como um processo auto-gerido, auto-organizado, auto-planejado pode ser feito.

501cEnquanto isso, a tendência de mais e mais ocupações seguirem sendo feitas é enorme. O Estado tem se empenhado em enfraquecer e solapar cada tipo de alternativa popular à crescente precarização de suas condições de vida (sejam alternativas de geração de renda, de trabalho, de educação, de cultura ou de moradia), bem como em criminalizar de toda forma os movimentos e as lutas sociais [9]. Assim, a indignação popular ganha cada vez mais justificativas e razões para existir – e a solidariedade e a ajuda mútua são imperativos cada vez maiores para isso! O repúdio à violência estatal e privada é amplo, crescente e legítimo.

Somos todos sem-teto. Somos todos camelôs.

Notas

[1] – Várias publicações feitas sobre o tema podem ser acessadas em http://passapalavra.info/?tag=ocupacoes

[2] – Atualmente diversos imóveis públicos no centro da cidade do Rio de Janeiro têm servido como estacionamentos privados, atividade que alia a extração de renda do imóvel à sua manutenção como reserva de valor imobiliário. Com os cada vez mais faraônicos e elitistas projetos de “revitalização” do centro da cidade (como se o que existe atualmente na área não fosse considerado “vida”), tais imóveis têm-se valido da crescente valorização imobiliária da região – demonstrando o constante descaso dos poderes públicos com a questão do déficit habitacional e do estabelecimento de alternativas de moradia para boa parte da população de baixa renda.

[3] – A situação e o processo de organização da ocupação foi registrado em uma série de publicações feitas no site desde fevereiro de 2009. Bons exemplos estão em http://passapalavra.info/?p=987 (mutirão de limpeza) e em http://passapalavra.info/?p=3431 (inauguração da biblioteca).

[4] – http://passapalavra.info/?p=989

[5] – http://passapalavra.info/?p=4040

[6] – http://passapalavra.info/?p=6903

[7] – Outro fato demonstrou com clareza ainda maior a relação que o poder público municipal estabelece com as famílias envolvidas em situações como essa. Na mesma semana, por ordem judicial, os mesmos ocupantes deveriam retirar seus móveis de baixo da marquise do prédio da Av. Gomes Freire. A Prefeitura, no entanto, fora obrigada a auxiliar no transporte desses móveis. Após aguardar a chegada de algum caminhão da administração municipal, qual não foi a surpresa e indignação: tratava-se de um caminhão de lixo da Companhia Municipal de Limpeza Urbana - COMLURB. As famílias que lá estavam recusaram-se a serem tratadas como lixo. Surpreendentemente ainda foi necessário negociar, em situações em diversos momentos de muita tensão, a presença de um caminhão adequado para o translado. Somente horas depois um caminhão da Defesa Civil pôde ser deslocado para o local.

[8] – É importante inclusive denunciar que até mesmo as marquises dos prédios do Centro do Rio de Janeiro têm deixado de ser um (precário e desumano) “teto” para a população de rua: um dos carros-chefe da atual administração pública municipal, chamado “Choque de Ordem”, tem implementado ações inconsequentes e absolutamente cruéis. Para além da perseguição irrestrita a camelôs, do roubo de suas mercadorias (diversas vezes “apreendidas” sem a devida notificação, impossibilitando a retirada dos materiais que teoricamente iriam para os depósitos da Prefeitura) e da proibição de distribuição de refeições a moradores de rua (dentre outras atitudes), a Prefeitura tem agora optado por lavar as ruas e calçadas da área central da cidade de noite com água clorada – impedindo a permanência de moradores de rua em áreas indesejadas.

[9] – http://passapalavra.info/?p=1754

Comentários

1 Comentário on "Guerreiros do 510, do 234, da rua…"

  1. Eduardo Tomazine em 30 de Julho de 2009 19:29
    Parabéns pelo relato, companheiros!
    Acho importante levantarmos as seguintes questões:
    1) Por que a polícia agiu de maneira tão truculenta dessa vez, se, no Rio de Janeiro, as expulsões de ocupações em edifícios públicos vinham sendo feitas mediante um aviso prévio aos ocupantes, os quais, em geral, optavam por sair pacificamente?
    2) Quais são os verdadeiros interesses da direção do INSS do Estado do Rio de Janeiro, se a linha atual (ao menos aquela que é declarada) do governo federal é transformar os edifícios desocupados da União em moradia de interesse social; se o INSS declarou arrecadação recorde no último ano; se a manutenção de um imóvel como aquele vazio representa mais um passivo do que um ativo nos cofres dessa autarquia e, por fim, se a incorporação dos imóveis para fins de moradia social não são feitas sem que a autarquia seja restituída financeiramente?
    A primeira pergunta pode começar a ser respondida pela leitura da atual conjuntura política da cidade do Rio de Janeiro. Essa foi, pois, uma “ação exemplar”.
    A segunda pergunta precisa ser encaminhada às direções estadual e federal do INSS, pois o ocorrido levanta, no mínimo, muitas suspeitas.

sábado, 11 de julho de 2009

“Choque de ordem” no Rio trata pobres como lixo!

No Rio, os pobres são tratados como lixo

A questão da habitação e a regulação dos pobres no Rio de Janeiro: “Choque de ordem” ou “choque de cidadania”?

Este é um texto coletivo, assine embaixo. Adesões: respondam para beppo@terra.com.br

Na Coluna Diálogos de Carta Capital http://migre.me/3bXE

A luta dos trabalhadores pobres por moradia digna está chegando a um momento crucial. Este momento é crucial também para os setores dos governos Municipal, Estadual e Federal ligados à esquerda, em geral, e ao PT, em particular. Urge perguntar: a “esquerda de governo” tem políticas públicas para os trabalhadores pobres da metrópole ou pensa apenas nos interesses das grandes empresas?

Há dezenas de ocupações no Centro da cidade do Rio de Janeiro.

Os ocupantes são conjuntos de famílias de trabalhadores informais (muitas de camelôs) que conseguem auferir uma renda trabalhando no Centro da cidade – onde colocam seus filhos para estudar – e não têm nenhuma proteção social.

Diante dessa situação inadmissível e, apesar de tudo o que se fala sobre formalização, proteção aos informais e recuperação da dimensão urbana do Centro da Cidade, as diferentes instâncias de governo (Município, Estado e União) se mostram completamente indigentes: não há nenhuma política pública que reconheça, em geral, o direito constitucional à moradia e, em particular, o direito à moradia dos trabalhadores pobres do Centro da cidade. Se existem alguns bons propósitos, como o projeto de recuperação de alguns prédios públicos para habitação, estes estão longe de acompanhar o ritmo das lutas e das ocupações.

O poder aparece diante dos pobres como um aparelho de proteção dos interesses da propriedade privada, inclusive quando ela é pública na realidade, como no caso de prédios abandonados às baratas por grandes administrações estatais. Pior, as decisões da Justiça só são acatadas e executadas pelos governos com lisura (e truculência!) quando são favoráveis aos proprietários. Quando, inversamente, são favoráveis aos movimentos dos pobres, elas são esvaziadas pela burocracia de sempre: enquanto a decisão da Justiça que obriga o Estado e a Prefeitura a pagar um aluguel social aos moradores despejados de uma ocupação precisa de 3 meses para ser acatada (e, ainda assim, apenas parcialmente), a decisão de despejo dos moradores do prédio do INSS da Av. Mem de Sá nº 134 foi executada em apenas três dias (no dia 26 de junho de 2009).

Esse episódio recente – violento e sem nenhuma mediação por parte dos chamados “poderes públicos” – é extremamente emblemático! As 30 famílias que ocupavam o prédio despejado – dentre as quais havia 35 crianças (tendo uma nascido na rua há pouco mais de uma semana) – foram desabrigadas de outra ocupação por causa de um incêndio. Neste caso, a Justiça interditou o prédio, mas determinou também que o Município auxiliasse os sem-teto na mudança dos pertences. No entanto, a Prefeitura mandou um caminhão de lixo da COMLURB para fazer a mudança! Assim, os sem-teto se recusaram a usar o caminhão de lixo e só saíram quando foi enviado um caminhão fechado pertencente à Defesa Civil.

Restam dois fatos políticos gravíssimos:

- os pobres são tratados como lixo !

- não há política voltada para eles !

Resultado: os acampados da Av. Gomes Freire continuaram com seu movimento e mostraram sua capacidade de luta ocupando um prédio (abandonado) do INSS na Av. Mem de Sá.

A pauta política imposta pela grande mídia conservadora sobre o “choque de ordem” se traduz politicamente na própria falta de políticas!

Quais são as políticas da Secretaria de Assistência Social do Estado, da Secretaria Municipal de Habitação e do Ministério da Previdência ?

O caso é particularmente grave: o governo municipal nos mostra uma visão incrivelmente pobre da questão da cidade, da moradia e dos pobres! Os avanços anunciados em termos de regularização fundiária e urbanística nas favelas não podem ficar separados de uma articulação com uma política integrada da cidade que reconheça concretamente o direito à moradia dos trabalhadores pobres do Centro da Cidade. Tudo o que se oferece é o programa federal “Minha Casa, Minha Vida” ou então, o abrigo. Ora, naturalmente, as famílias de trabalhadores que hoje estão na rua não podem esperar a execução (demorada) do programa federal de habitação e o abrigo não é moradia: ele implica em um sistema de restrições infindáveis e o esvaziamento do caráter imediato da luta por moradia.

Escandalosamente, a Secretaria Municipal de Habitação não propõe nada e dá a entender que o movimento das ocupações não é bem vindo nem bem quisto; quase como se fosse um lobby em busca de alguma benesse ou privilégio.

O movimento não é lobby, mas a base da construção da democracia e da cidadania!

Os trabalhadores pobres do Centro do Rio de Janeiro precisam de proteção social: é preciso RESOLVER JÁ A QUESTÃO DA MORADIA E NEGOCIAR COM AS OCUPAÇÕES: dito isto, é preciso implementar imediatamente um programa de titulação jurídica, de assistência técnica gratuita e de adequação dos prédios para fins de moradia. É um escândalo que ainda não se tenha implementado um projeto de regularização da documentação da grande multidão de ocupantes (sem certidões e documentos!) que permitam seu cadastramento no programa Bolsa Família.

A informalidade não é mais a sobra residual de uma taxa de crescimento econômico insuficiente. Ao contrário, o próprio crescimento gera e multiplica a precariedade do emprego. A informalidade mistura assim as mazelas do subdesenvolvimento com aquelas da modernização e as novas formas de precariedade do trabalho, sobretudo em âmbito metropolitano. Não por acaso, entre os ocupantes e os manifestantes que participam do movimento dos sem-teto há estudantes universitários: não se trata de solidariedade ideológica, mas de uma nova composição do trabalho que nossos secretários e ministros poderiam começar a enxergar, se não quiserem abrir o caminho àquele declínio da esquerda cujas modalidades e resultados podemos facilmente observar em vários países europeus.

Diante disso, o “combate à informalidade” apresenta-se aberto a uma grande alternativa:

- por um lado, aquele pautado pela elite, faz do “choque de ordem” uma linha repressiva permanente, sem fim: a repressão aos pobres se torna uma política que preenche o vazio da própria ausência de política, quer dizer, de governos que não tem projeto nenhum que não seja aquele de … governar!

- por outro, aquele pautado por uma política progressista de mobilização democrática que reconhece a dimensão produtiva dos direitos, a começar pela moradia! Oferecer aos trabalhadores pobres uma moradia digna, acessível e próxima do local de trabalho é um passo essencial na construção de uma rede de proteção social adequada a esse novo tipo de trabalho e na reconstrução da política democrática, do trabalho da democracia e dos direitos.

Como podem os responsáveis pelos cargos de governo que dependem da mobilização dos pobres ignorar os movimentos? Como pode o Ministro da Previdência ignorar os pedidos de socorro daqueles que não tem previdência nenhuma ?

É preciso perguntar se as diferentes instâncias de governo só pensam em entregar mais dinheiro para as grandes empresas através da multiplicação das renúncias fiscais ou se sabem – ao contrário – tirar a lição da re-eleição de Lula em 2006? Pois são as políticas sociais que pavimentam o caminho de um outro modelo de desenvolvimento e de sua base de legitimação social!

Precisamos, mais que nunca, de um choque de cidadania no Rio de Janeiro – a começar pelo reconhecimento das justas lutas dos trabalhadores informais sem-teto do Centro da cidade!

sábado, 4 de julho de 2009

Vídeo com algumas imagens do brutal despejo


Como diz o próprio título do vídeo, é a falência do Estado. O Estado que não dá as mínimas condições de dignidade para a grande maioria de sua população.
O vídeo mostra apenas alguns trechos da Violência policial realizada contra aqueles e aquelas que como armas de luta tem a sua coragem, seu grito, sua vontade de transformação e mudança.

Viva a heróica resistência dos povos ao redor do mundo. Avante Guerreiros!

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Despejo na Gomes Freire.



No dia 25 de junho à noite a Defensoria da União conseguiu uma decisão que cassava a decisão liminar pelo despejo, mas aparentemente os procuradores do INSS agiram e conseguiram a liminar de novo.
Os sem-teto, a Defensoria e outros órgãos procuraram o INSS, a SPU (Superintendência de Patrimônio da União) e outros órgãos federais para negociar, mas estes se mostraram irredutíveis ou disseram que "não poderiam fazer nada"...

No dia 25 de junho, o restante dos pertences das famílias que ainda se encontravam no prédio da Rua Gomes Freire 510 foram retirados, depois de horas de tensão. Inicialmente, a prefeitura mandou dois caminhões de lixo para buscar o material, o que causou revolta e resistência dos sem-teto. O subprefeito do centro e o major da PM que estavam comandando a operação chegaram a mobilizar a Guarda Municipal com armadura e escudos, por pouco várias mulheres que comandavam a resistência não foram agredidas. Entretanto, a resistência foi correta, pois a prefeitura foi obrigada a recuar da atitude arrogante e humilhadora, mandaram embora os caminhões de lixo da Comlurb e trouxeram um caminhão baú apropriado para mudanças.


Ainda assim, a secretaria de "ordem pública" (a secretaria do choque de ordem do Rodrigo Bethlem) continuou criando dificuldades, se recusando a entregar os pertences nos espaços de outras ocupações que já havia sido negociado entre os próprios sem-teto. Somente tarde da noite de ontem a mudança foi concluída.

(enviado por Rede contra a Violência).

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Reintegração de Posse do prédio do INSS.














A ação da Reintegração de posse iniciou por volta das 10h da manhã do dia de hoje, com a chegada da Polícia Federal.













Os ocupantes decidiram se manter no prédio defendendo que a ocupação é legítma, uma vez que não possuem moradia e o recinto, pertencente a um orgão governamental, está sem uso- e sem previsão de uso- há 5 anos.

Com a chegada da Polícia Federal, os ocupantes saíram as sacadas cantando palavras de ordem e pronunciando falas em defesa da ocupação.









Por volta das 11h a Polícia Militar começou a primeira ameaça de retirar da frente da porta do prédio do INSS os apoiadores da ocupação que ali se mantinham no intuito de impedir a entrada dos policiais no prédio. Pouco tempo depois, a Tropa de Choque chegou e enquanto isso, os PMs começavam a cercar os apoiadores na porta do prédio.













Em seguida, a PM começou a empurrar e jogar spray de pimenta nos apoiadores que se mantinham de braços dados, em frente a porta do prédio, dizendo palavras de ordem.












Não conseguindo deslocar os manifestantes de braços dados que assim se mantinham mesmo após o spray, os políciais arrancaram pessoas do cordão humano, as segurando com um cacetete pelo pescoço.













Bombas de efeito moral foram jogadas. Uma dessas foi atirada para o alto, quase atingindo os ocupantes do prédio, dentre elas e eles, uma mulher que carregava o filho recém-nascido.


Após a dispersão brutal dos apoiadores, a tropa de choque cercou a porta do prédio e a PM tentou em vão abri-la. Bombeiros chegaram ao local e cortaram a porta com uma serra elétrica. Isso não foi o bastante para desbloquear a entrada da construção. Mas assustados com a violência e abuso de poder da Polícia, os ocupantes decidiram sair do prédio para evitar que a Polícia entrasse e agredisse as crianças e mulheres gestantes.




Depois de serem despejados, os sem teto se instalaram em frente ao prédio administrativo do INSS para protestar contra a situação ocorrida. Disseram que continuarão nesse local até que as autoridades lhes forneça um prédio inativo para ocuparem.


Relato de uma moradora.

"72 famílias, sendo 28 crianças, dentre camelôs, estudantes,

trabalhadores com carteira assinada foram despejados do prédio sitiado

na rua Mem de Sá, 234, centro do RJ, com truculência e violência. Três

pessoas foram presas. A primeira iniciativa foi lançar spray de

pimenta e gás lacrimogênico, que causou lesões em profissionais da

imprensa e muitas pessoas no prédio passaram mal, inclusive uma

criança de 20 dias que imediatamente vomitou.

As famílias estavam sendo acompanhados pela defensoria pública de

terras e habitação, todos tentavam uma negociação entre a secretaria

de habitação e a União. Estão aguardando na praça em frente ao INCA,

sem comida, sem orientação de para onde ir.

Histórico: essas pessoas ocupavam o prédio abandonado da rua Gomes

Freire, 510, qdo o prédio foi interditado por laudo da vigilância

sanitária de que corriam risco de desabamento. Foi dado 72h para

retornarem e passaram 1 mês na rua sem nenhuma providência.

O prédio atual está abandonado há 5 anos e é do INSS".



Relato de um manifestante.

Rio, sexta-feira, 26 de junho de 2009. Meio-dia, aproximadamente.

(Assim chamou-se a vitoriosa ocupação da Mem de Sá, e se dizemos vitoriosa, mesmo desalojada, é porque em tempo algum a estupidez venceu as flores).

Bombas de efeito imoral... Coturnos e cassetetes.. . Spray... Meu rosto vermelho de ódio e pimenta! Tanta força bruta, pouco direito, pouca educação... Ordem para os pobres, progresso para os ricos!, alguém já deve ter dito isso antes ...
A constituição rasgada diante dos nossos olhos, a truculência policial desfilando na avenida..., Sete de setembro? Não, despejo. Cacos de direitos humanos pelo chão... Falou-se em cumprimento da lei, mas cumprimento da lei não implica em humilhação e tortura, e se a lei não serve ao povo, e se o povo é a maioria, ora, então de que serve a lei? Era mais que “dever” aquilo, era perversão mesmo, fetiche... Aqueles homens (?) se realizavam em sua violência... Alguns riam... Risos.

Crianças cantavam... Cantavam alegremente. .. Cantavam loucamente.. . E o desespero se misturava ao amor... Cantavam palavras de ordem, cantavam o hino nacional, e também canções religiosas.. . Que importa?! As crianças cantavam, e cantando se formavam numa autêntica Educação para a democracia! De maneira irônica e mesmo heróica os princípios políticos proclamados na LDB se cumpriam, crianças sem casa e talvez sem escola, mas não sem educação.

Sim, aquilo era Educação popular, um processo genuíno de formação política das classes populares, um ato educativo, pedagógico mesmo. E formando-os, também nos formávamos. Educação com o povo, educação popular.

Agora, detidos e transportados como animais na traseira de um Camburão, dividindo um espaço ínfimo, quase sufocados, no auge do nosso sofrimento, o companheiro Vlad. voltou-me os olhos úmidos e sorrindo, perguntou:

- Como vai a vida, companheiro? Está amando?
- Sim, amo, - respondi - mas não vou bem na faculdade...

E rimos, e assim sublimamos o sofrimento. A luta política é antes uma forma de ressignificar o sofrimento humano. O Vlad. pensou que morreríamos (porque a viatura tomara um destino diferente do informado), eu só queria sair dali, mesmo que fosse para isso - estava sufocando e àquela altura me concentrava em respirar. Em certo ponto daquele passeio bizarro, disse-lhe: - É só se concentrar, companheiro, concentre-se. .. Nossa companheira, no banco da frente, discutia firme e serena com o policial, e foi chamada de safada e palhaça por ele... Lá de trás, tivemos que ouvir isso em silêncio... A companheira E. continuava contestando e resistia bravamente. Minutos antes, num gesto de paixão e desprendimento, a companheira D. lançara de volta um jarro de mágoas que um soldado romano havia atirado em nós, e o jarro enfumaçava a rua... E era como um incenso, incenso de repressão...
Em certa altura da Batalha, tive a impressão de que a repressão do estado pesa de forma mais contundente sobre aqueles que têm a pele mais escura, ou menos clara, como queiram... Ouvi relatos da companheira G. voando pelos ares, enquanto eu era “conduzido” (recebendo uma “gravata”) com o corpo dobrado para frente, como em gesto de obediência e submissão... Não houve ofensa racial, de fato, mas houve tratamento racial; ali eu fui, sem dúvida, um escravo sendo capturado por um capitão do mato. O meu Black voava pelo ar, de pé para a luta. Vale dizer que aquela ocupação era negra. Neste país, o poder senti-se mais a vontade para se exercer sobre os não-brancos. Estávamos ali, e pessoas brancas e de belos olhos também lutavam e resistiam bravamente, e sofriam, e eram esmagados... E havia beleza e horror naquilo tudo!

Sim, esmagados em plena a democracia, a ditadura continua para os pobres em geral e para os negros em específico.

Por fim chegamos, e após uma eternidade saímos. E quando saímos tocava em algum canto da cidade uma canção do Bob Dylan, e sabíamos então que estávamos livres... Livres agora... Abraçamo-nos todos e todas, durante todo processo amparados por um bravo advogado, o companheiro e Dr. A.P, homem de meia-idade que trazia nos olhos o brilho vivo da ideologia, e animados pelo encorajamento de outros lutadores e lutadoras. (E enquanto isso ocorria, muitos outros continuaram na praça de guerra, acompanhando, registrando e orientando todo o processo)
Demos mais um passo em liberdade, e derrepente era preciso continuar a luta, a luta continua, alguém diria, havia inúmeras famílias desalojadas. .. Era preciso ainda ocupar e resistir!


R.Q.


P.S. Não participei organicamente do processo desta ocupação, nem posso me considerar diretamente engajado neste movimento. Somente compareci ao ato em solidariedade a causa, e neste sentido aproveito para manifestar o meu amor e respeito não somente às famílias ocupadas, mas a todos os companheiros e companheiras que efetivamente constroem esta luta no cotidiano das ocupações sem-teto do Rio de janeiro. O movimento estudantil tem muito a aprender com as ruas...

Ocupação de prédio do INSS



"Nós, sem-teto, estávamos desde o final de maio na rua, devido à interdição do prédio que ocupávamos, na Rua Gomes Freire 510, pela prefeitura(movendo ação judicial), após um incêndio criminoso que atingiu apenas alguns dos andares, ocupamos outro prédio abandonado, na Rua Mem de Sá 234 (próximo à Praça da Cruz Vermelha). Foi uma questão de urgência, já que estávamos sofrendo as maiores exposições com bebês recém nascidos(!!) , idosos e crianças na marquise da nossa antiga moradia e ainda estávamos sendo ameaçados de expulsão dali para terça feira (23/06). Tivemos nosso pedido de cadastro no aluguel social negado pelo Município. Mas o Estado reconheceu a situação limite e cedeu após a pressão política da nova ocupação. Agora o proprietário do imóvel, o INSS, moveu uma ação de reintegração de posse aprovada pela juíza Claudia Neiva da 14ª Vara Federal Cívil, programada para acontecer em qualquer hora do dia ouda noite(como consta na ordem judicial) com a ação da Policia Federal. Sabemos que desde 2002 o Governo Federal promete implementar um programa de transformação de prédios da União(a qual pertence o INSS) abandonados em moradia para famílias de baixa renda. Por que então pretendem botar famílias na rua sendo que o próprio Governo do Estado reconheceu essa questão urgente? Essa é a política de moradia aos trabalhadores: crianças, recém nascidos, idosos, mulheres e homens na rua, sem qualquer oportunidade. A tríplice aliança do governo Federal, Estadual e Municipal(apresentados pelas figuras de Lula, Sérgio Cabral e Eduardo Paes) move choques de ordem e a suposta ?revitalização? do centro do Rio, que não passa de uma suja parceria de especulação imobiliária e empresas privadas disposta a expulsar a população pobre daqui. Esperamos ser ouvidos, ser um exemplo de resistência e pedimos aos trabalhadores e trabalhadoras dacidade que se organizem em solidariedade a nós!

Se morar é um direito, ocupar é um dever!"

Declaração sobre o incêndio no prédio da Gomes Freire

"Caros/as companheiros/as.
Na sexta-feira, 22 de maio, à noite, o prédio da Av. Gomes Freire, 510,próximo ao Centro do Rio/RJ, ocupado por diversas famílias organizadas pelo MTD, sofreu um terrível acidente que nos entristece profundamente. Na sexta à noite um incêndio se iniciou em um dos andares do edifício, multiplicado, atingiu mais quatro andares e sofreu intervenção da Defesa Civil e do corpo de bombeiros. As famílias permanecem resistindo, e nesse momento fazem uma vigília em frente ao prédio à espera dos resultados do laudo da defesa civil.
Durante todo o sábado, houve uma intensa negociação para permitir a estadia das famílias nos andares do prédio (de 18 andares) que permaneceram intactos ao problema, mas descrente deste apelo e à despeito de nossos esforços, um sórdido e rápido despejo foi orquestrado pelos poderes constituídos, e as famílias exauridas pelo acidente e desgaste da noite anterior, foram expulsas do prédio, anteriormente cuidado e ocupado para a moradia.
Muitas famílias perderam tudo o que tinham no incêndio e precisam urgentemente de remédios, alimentos, fraldas, roupa de cama, etc. Aproveitamos para dizer que todas as doações são necessárias e serão bem vindas. É só procurar a Dona Penha ou o Naval.

AVISO AOS PODEROSOS: PROSSEGUIREMOS LUTANDO ATÉ QUE O ÚLTIMO DE NÓS TOMBE. SE DESPEJAM TRABALHADORES/AS DE UM PRÉDIO, OCUPAREMOS MAIS DOIS".

(declaração do MTD)